Aquele que sonha o Paraíso, nunca se reconcilia com a dor.
A um comentário ouvido na RTPN há cerca de dez dias, e feito por um jornalista, cuja graça me escapou e que afirmava ser o Hizzbollah uma organização humanitária muito respeitada:
Israel está a ser atacado por foguetes humanitários?
Qual seria o efeito de uma agressão com foguetes não-humanitários?
Qual a razão do apoio de tanta gente a uma organização que semeou o Líbano de pólvora?
O Quai des Orfévres ardia no Verão parisiense. Incomodado pela transpiração e pelas moscas esvoaçando à sua volta, o Comissário retirou o seu cachimbo preferido, sem contudo se resolver a acendê-lo. As sandes e cervejas que Janvier encomendara à Brasserie Dauphine esperavam-no, intactas, sobre a secretária.
Entreabriu a porta. O fim-de-semana adivinhava-se calmo.Uma senhora de idade esperava ser recebida, sentada entre dois velhos conhecidos da Brigada dos Costumes. O barulho das máquinas de escrever dos gabinetes dos inspectores. quase cessara.
Fechou a porta. M. Simenon, nome até então desconhecido, telefonara de manhã e prometera visitá-lo naquela tarde quente de Sábado. Ainda não chegara. Dissera-lhe que queria conversar consigo acerca de seu pai, caseiro de um castelo no Centro de França.
Um pouco enervado, mandou entrar a velha senhora a quem ouviu, não sem disfarçar um bocejo. Reparou no seu olhar inquieto, como se receasse algo (ou simplesmente não ser ouvida) e que usava um extravagante vestido às flores. Maigret prometeu que lhe enviaria Lucas, assim que chegasse. Teve o vago pressentimento de que havia qualquer coisa errado, assim que a vekha sebhora saiu,
Contornou a secretária e dirigiu-se à janela aberta sobre o Sena. Barcaças, cansadas de calor, subiam o rio. Nas margens erguia-se uma névoa fosca. Namorados abraçavam-se na margem. Palavras soltas desprendiam-se das conversas dos passantes.
Pensou uma última vez na visita de M. Simenon. Não compreendia o porquê daquele telefonema e isso incomodava-o tanto como aquela espera em vão. Ao fim e ao cabo, pensou, o que poderia dizer acerca de seu pai? A sua família não tinha segredos. Sorriu perante esse pensamento para logo depois se irritar consigo próprio.
Desceu as escadas depois de desejar bom fim de semana aos inspectores e a Moers que, entretanto, chegara. Na entrada, despediu-se do porteiro (à demain, mon vieux!). Dera dois passos na rua quando uma leve dor no coração o sobressaltou. Parou um segundo antes de continuar a caminhada. Ocorreu-lhe a imagem de Mme. Maigret na sua sala lendo uma revista enquanto o esperava para jantar . Outra vez aquela dor!
Seguiu em frente, enquanto os primeiros sinais da noite se derramavam sobre Paris.
Viver no céu, sonhando a terra,
Viver na terra, sonhando o céu,
A fina linha de ouro do horizonte,
Esconde um espaço imenso e incolor.
Um noticiário televisivo abordava a guerra no Médio Oriente.
Duas reportagens:
Um soldado de Israel morto em combate descia à terra. A câmara, fugidia e um pouco afastada, pouco tempo se deteve a mostrar a dor de quem ficou.
Agora estamos no Líbano. A câmara detém-se num rosto feminino, como se a dor se quisesse derramar sobre tudo o que se via. Duas lágrimas rolaram pela face da mulher e lentamente desceram até se desfazer.
Dou comigo a pensar que a sociedade ocidental se está a tornar uma sociedade de sentimentos. Digo: ainda bem! Ainda bem que o humano se pode manifestar na plenitude da sua existência. Mas uma dúvida me ocorre e ocorrendo sugere limites: sociedades que se constituem em torno de sentimentos, implicarão regimes políticos capazes de se deixar impregnar sem que a racionalidade dos seus projectos e as regras da luta pelo poder sejam avaliadas.
Maquiavel vê a novela da noite e chora, vai ao estádio e coloca o cachecol no automóvel. Já não encontra palavras que lhe possam ser úteis. Apenas imagens.
O mundo islâmico radical compreende o beco sem saída. E conta uma fábula que se situa algures entre David e o Capuchinho Vermelho. Que nós aceitaremos, pois apenas queremos uma história. Mesmo que de moralidade incerta.
As lágrimas de uma Mãe não serão transparentes.
Sábado.
O sétimo dia da Criação.
Dia de repouso para os humanos.
(E assim para todos os seres viventes!)
Uma luz mais intensa..
Dia de Sábado.
. Coisas óbvias que ninguém...